22 de jun. de 2012

fim da história

finalmente terminei a impressionante biografia de van gogh.

abaixo um desenho a giz que vincent fez de rené secrétan, o rapazote que gostava de posar de buffalo bill e andava com um revólver calibre 38 para cima e para baixo em auvers.


na reconstituição que os biógrafos oferecem, a morte de van gogh teria sido decorrente de um disparo acidental do revólver de rené, que provavelmente estaria na companhia de seu irmão gaston. van gogh teria protegido os dois por razões basicamente existenciais, como uma espécie de martírio voluntário naquela situação extremamente difícil e insolúvel em que vivia - pessoal, artística, social, familiar, financeira, física e mental. por convicção e credo próprio, jamais procuraria a morte deliberadamente, como disse certa vez, "mas não tentaria escapar se acontecesse".

é tudo muitíssimo mais articulado, complexo e documentado do que isso, claro, mas o fim da história, em suma, é este.

21 de jun. de 2012

não, van gogh não se suicidou


bom, foi assim: dia 27 de julho de 1890 van gogh volta para almoçar na estalagem onde está hospedado; almoça, pega seus apetrechos de pintura (tela, cavalete, pincéis, tintas, bloco de papel) e sai para ir pintar. cerca de cinco horas depois, volta à estalagem segurando o estômago e sem nada na mão. diz que se feriu e pede um médico. chega um médico, olha, era um orifício de bala calibre 38, logo abaixo das costelas, na parte superior do abdômen; tinha sangrado pouco e estava alojada no fundo da cavidade abdominal (o médico sondou com a mão), perto da coluna vertebral. ele estranhou algumas coisas: o tiro era baixo, veio numa direção oblíqua, a bala entrou de enviesado e se alojou por ali. concluiu que tinha sido um disparo de alguém, porque: se fosse o próprio vincent querendo se matar, por que miraria tão baixo? ademais, entrando numa trajetória oblíqua, parecia um disparo não intencional, e sim mais tipo acidental. além disso, se tivesse sido um tiro de perto ou à queima-roupa, a bala teria tido impulso para atravessar o tecido mole da seção média, perfuraria o osso e sairia do outro lado. pelo impacto, ele (e depois outro médico que chegou, o dr. gachet) concluiu que o disparo tinha sido de mais longe, "longe demais" para ter sido o próprio vincent a atirar.

aí vem a polícia - e como ele tinha dito "je me suis blessé", os policiais perguntam se foi ele mesmo que atirou em si. vincent responde, "foi, acho que sim"; eles insistem lembrando-lhe que suicídio era crime, e aí sim ele fica veemente e diz: "não, não acusem ninguém, fui eu mesmo que disparei em mim". tem muitas histórias desencontradas, muitas lacunas e incongruências; o revólver sumiu, a tela, o cavalete, os pincéis, tudo, tudo sumiu, inclusive dois rapazinhos que estavam passando as férias de verão na casa de campo do pai ricaço, um deles bonzinho, o outro uma peste, que justamente andava sempre com um 38 na mochila.

na lenda, nascida de boatos posteriores e fomentada principalmente por émile bernard, ficou que foi ele que se suicidou (com um tiro de longe na barriga? ele que não tinha armas e não sabia nada a respeito de armas? que várias vezes se manifestou enfaticamente contra o suicídio?). a lenda se engrandeceu e se cristalizou como mitologia, dizem os biógrafos.

o apêndice do livro retoma os poucos fatos comprovados, os diagnósticos, os registros das investigações policiais, depoimentos e entrevistas posteriores de testemunhas etc., e apresenta uma reconstituição dos acontecimentos segundo o que parece mais plausível e verificável aos autores. é longo, é interessante, é convincente, merece leitura, análise e atenção. dou apenas a conclusão: não, van gogh não se suicidou.


a reunificação na charneca

o luto de theo por vincent consistiu basicamente em reencarnar o irmão. no começo, ele que era sempre diplomático, educado, suave e conciliador, passou a se entregar a rompantes de fúria, ódio e gritarias. demite-se da goupil aos berros e sai batendo a porta (trabalhava lá desde adolescente). faz planos grandiosos de exposições da obra do irmão, relê todas as cartas, procura quem escreva um livro a partir delas, seu único tema de conversa é vincent. um mês depois entra em parafuso, a sífilis atinge o cérebro, é internado no hospital, transferido para um hospício. por um lado, é atendido pelos melhores médicos da frança, vai para o melhor hospício particular do país, recebe um cortejo de amigos e parentes em visita, tem a esposa jo bonger sempre amorosa e solícita, tudo ao contrário da solidão, isolamento e pobreza de vincent; por outro lado, theo tem uma constituição mais franzina e menos resistência psíquica e mental do que tinha vincent. é penosíssimo e fulminante o avanço da demência e da paralisia. 

jo o transfere para utrecht. não fala mais, não anda mais, tem incontinência, não se alimenta sozinho etc. acaba morrendo seis meses depois de vincent. apesar dos protestos de jo, a família sente vergonha; é enterrado sem funerais nem nada no cemitério público de utrecht. 25 anos depois, jo (aliás, era tradutora literária), que traduzira e publicara as cartas de vincent, divulgara sua obra etc., faz o translado do corpo de theo para auvers, enterrando-o ao lado de vincent; coloca lápides iguais com epitáfios iguais.


vincent por toda a vida sonhara em se reunir ao irmão nas charnecas da infância: finalmente os dois ficam juntos para sempre, entre os trigais de auvers.


que bestalhão!

gauguin não vai ao enterro de vincent, alegando que não recebera o aviso do funeral em tempo. para além das relações pessoais com vincent, gauguin era muito devedor de theo. mas depois ele comenta com bernard que seria "idiota" de sua parte permitir que o associassem de alguma maneira à figura daquele louco.

20 de jun. de 2012

as últimas palavras

meia-noite e meia, 29 de julho de 1890, lutando para respirar, aninhado nos braços de seu waarde theo, vincent diz: "é assim que quero morrer". foram suas últimas palavras. lutou mais meia hora por ar, depois morreu.

o último quarto


foi aqui o último quarto onde vincent morou (maio-julho de 1890), em auvers. já levou o tiro, theo saiu correndo de paris para ir vê-lo. conversaram a tarde toda e continuaram noite adentro.

o último convite



última carta de vincent a theo, 23 de julho de 1890: nela ele faz um enorme croqui do quadro (também enorme, de largura dupla) que pintara tendo como tema o jardim de daubigny, e diz que é uma de suas pinturas mais refletidas, meditadas, intencionais e deliberadas. a essas alturas a coisa já está tão densa que fica até difícil expor a quantidade de motivos e razões presentes no quadro, que o levam a dizer a theo que é um dos mais carregados de significado. de qualquer forma, ele tinha escrito um rascunho da carta, um pouco mais explicativo, mas desiste e apenas diz: "bom, na verdade a única coisa que a gente pode fazer é deixar nossos quadros falarem".

mas, essencialmente, a questão principal é que esse quadro é o enésimo convite, mas o mais elaborado, o mais cheio de conotações, para que theo (e família) venha morar junto com ele, consumando anseios antiquíssimos e conceitos profundamente arraigados de um lar e uma irmandade de sangue e de arte, os laços indissolúveis entre "almas gêmeas", partilhando uma vida - nem sei como dizer, plena? - em meio à natureza e à arte. dito assim, fica meio superficial, mas, conforme a biografia foi sendo construída, a coisa adquiriu muita consistência e aqui culmina quase no sublime.

e muito provavelmente é também, segundo os especialistas, o último quadro que pintou em vida.

19 de jun. de 2012

as telas de largura dupla

note-se que, a partir de certa altura, em auvers, ele começa a pintar em telas de "duplo quadrado" ou "largura dupla", isto é, de 100 x 50. é este o formato que passa a ter sua imaginação nas últimas semanas de vida, dizem os autores: "apenas numa imagem deste tamanho ele conseguiria se perder - se deixar engolfar - nos êxtases do pincel e nas eternidades do olhar".

a wikipedia traz os quadros que ele pintou nessas dimensões, aqui.


Van Gogh's Double-square canvases

Mademoiselle Gachet at the Piano, 1890, Kunstmuseum Basel

o trigal com os corvos

já tinha comentado aqui como a imagem do campo de trigo era desoladora para ele. agora, catástrofe geral com theo e jo, um drama danado, nem queiram saber. volta a auvers e muda totalmente o tema e o espírito de suas pinturas. se antes pintava casas, jardins, pessoas, vistas de cidades, chalés etc., sempre algo evocando o doméstico, o acolhedor, os céus radiantes, o sol, as estrelas, agora é a desolação suprema, a solidão radical, nenhuma alma viva, nenhuma morada, nenhum campanário, até um horizonte que nem se enxerga de tão distante. e os céus, ah, os céus: carregados, tempestuosos, ameaçadores, um vendaval tão forte agitando o trigo que chega a afugentar os corvos ali aninhados, assustados com a inclemência dos elementos. como disse ele, agora não anuncia mais o poder consolador da natureza; usa o pincel "para expressar a tristeza e a solidão extrema". meados de julho, pouco antes de morrer.


18 de jun. de 2012

"visão amarela"

essa biografia é simplesmente fabulosa porque é exaustiva, detalhada, muito bem construída, só sobre a vida do van gogh. não discute a infinidade de temas, problemas, dúvidas, estudos e questões que se multiplicam em torno dele. pega seu barquinho e toca em frente.

a parte das notas, referências, remissões, tudo isso, o lado mais acadêmico, digamos assim, ficou todo online, como comentei aqui.


então, agora é um comentário só meu, sobre uma questão que nem é citada no livro e é a seguinte: uma das hipóteses muito discutidas sobre van gogh diz respeito ao uso da digitális. um de seus efeitos, quando usada em excesso, é a xantopsia, um distúrbio da visão que faz enxergar as coisas em amarelo. como há quem diga que a digitális era usada para tratar epilepsia, a chamada "fase amarela" de van gogh teria sido, na verdade, resultante de um abuso de digitális no tratamento de sua doença.

bom, quem sou eu para dizer qualquer coisa, mas, pelo que vejo nesta biografia que estou traduzindo, algumas coisas são dados de fato:

- a dita fase amarela: teria sido em arles, "sob o sol do midi", desde o começo de 1888, com a casa amarela, os girassóis amarelos etc., antes da mutilação da orelha que o levou ao hospital da cidade (dezembro).
- foi no hospital, lá pela segunda ou terceira internação, já em 1889, que dr. rey aventou a hipótese de uma epilepsia não convulsiva (i. é, cerebral ou do lobo temporal, como dizem hoje), mas não lhe foi ministrado nenhum remédio à base de digitális (que é um estimulante). pelo contrário, ele tomava tranquilizantes, a saber, brometo.
- além disso, nas referências que encontrei, dizem que se usava a digitális para epilepsia convulsiva, não epilepsia latente ou cerebral (que, na verdade, nem era ainda reconhecida amplamente pela comunidade médica).
- somente quando van gogh vai para saint-paul em maio de 1889 é que o diretor do hospício ratifica o diagnóstico de epilepsia cerebral sugerido por dr. rey, mas não lhe foi ministrado nenhum remédio à base de digitális, que, repito, era mais usualmente empregado como tônico para acelerar a pulsação cardíaca.
- quando ele sai de lá e vai para auvers, em maio de 1890, é que conhece dr. gachet, que usava homeopatia e fitoterapia, e pinta um retrato dele com dois ramos de digitális (o quadro está aqui). dr. gachet discordava do diagnóstico de epilepsia e declarou que vincent estava com a saúde cem por cento. ademais, gachet usava a digitális para combater depressão, não epilepsia. não consta que ele tenha ministrado medicamentos à base de digitális para vincent. 


então, cá raciocinando com meus botões, fico achando bastante furada essa história de que seus sóis, campos, girassóis etc. fossem tão amarelos porque ele estivesse com xantopsia decorrente do abuso da tal dedaleira, pois as datas simplesmente não batem (para nem falar da adequação medicamentosa). mas, mesmo que tivesse tomado digitális, teria sido em doses homeopáticas, nos dois últimos meses de vida: ou seja, anos depois da dita fase amarela, e nem daria tempo para se entupir a ponto de desenvolver "visão amarela".


os meses finais em auvers, dr. gachet

muito voluntarista que sou, achei que terminaria a biografia do van gogh na semana que passou. que nada! vai ainda mais alguns dias: estamos em auvers, em junho de 1890, um mês antes de seu fim trágico. dr. gachet, que atendia sumidades artísticas como manet, renoir e cézanne, e fora recomendado a theo e a vincent por pissarro, de início pareceu a vincent tão maluco quanto ele mesmo, e ele perguntava: como um cego há de guiar outro cego? gachet se põe à disposição e diz que, se sentir alguma depressão ou qualquer coisa que lhe pese demais, pode oferecer a vincent um tratamento "turbinado". gachet usava homeopatia, e a "turbinada", aparentemente, consistia no uso de digitális. aqui, o retrato de dr. gachet e uns ramos de digitális num copo. notem-se as eternas brochurinhas de capa amarela.


17 de jun. de 2012

lust for life



maria josé perillo isaac bem lembrou lust for life (no brasil sede de viver, 1956), o filme de vincent minelli sobre a vida de van gogh com kirk douglas no papel principal e anthony quinn como gauguin (que lhe valeu seu segundo oscar, como coadjuvante). o filme se baseava na biografia romanceada escrita por irving stone (1934), de mesmo título.

fui dar uma espiada no brasil: lust for life de stone saiu pela josé olympio em 1945, em tradução de lúcia miguel pereira, com o título de a vida trágica de van gogh. aqui a capa da terceira edição, 1956:



esse quadro na capa é muito bonito; comentei-o rapidamente aqui.





depois, c. 1985, a record lançou a mesma obra com o título sede de viver - a vida trágica de van gogh, em tradução de a. b. pinheiro de lemos.


que legal!

um lindo presentinho de sonique mota, no facebook - simon schama apresentando van gogh em sua série da bbc:


16 de jun. de 2012

o último quadro em saint-rémy

último quadro de van gogh antes de sair do hospício de saint-rémy, em maio de 1890: "no portão da eternidade".


Como a coisa que mais o apavorava era a ociosidade, ocupou seus últimos dias no hospício – enquanto negociava com Theo os detalhes da viagem – pintando uma 'tradução' derradeira. Escolheu uma litografia que ele mesmo fizera em Haia, em 1882. Mostrava um velho sentado junto ao fogo, com a cabeça enterrada entre as mãos, esmagado sob o peso das desgraças e do vazio da vida. Mortificando-se de desespero, transferiu laboriosamente o patético autorretrato para uma tela grande, usando laranja, azul e amarelo – as cores de seu empreendimento naufragado no Midi.

15 de jun. de 2012

o único quadro vendido em vida


um dos maiores pesadelos de vincent era a dívida que tinha para com theo (este mantinha um livro de registros de todo o dinheiro que fornecia a vincent ao longo dos dez ou mais anos que o sustentou) - os sentimentos de fracasso, de impotência, de dependência do irmão, de culpa por tudo isso, eram avassaladores. não só por si, não só pelo irmão, mas por toda a questão e sensação de não conseguir se sustentar sozinho, um anátema familiar, social, religioso, cultural: um parasita, um incompetente, um incapaz.

depois do artigo de aurier em janeiro de 1890 e da mostra de les vingt em bruxelas, também em janeiro, vem a compra do primeiro e único quadro que ele vendeu em vida: o vinhedo vermelho, pintado em arles em novembro de 1888. em março de 1890, theo lança em seus registros contábeis o primeiro crédito para começar a abater a dívida - 400 francos. pode parecer mesquinho, mas não é não. é até um mínimo de respeito pela dignidade do irmão: não era um mendigo, um esmoler.


14 de jun. de 2012

redenção


essa amendoeira em flor é um caso sério! tudo foi ficando tão complicado! de qualquer forma, é um pedido de perdão à mãe e o presente que pintou para o sobrinho recém-nascido, a quem theo e jo deram o nome de vincent, em lembrança a ele. mas o detalhe técnico assombroso da coisa é que o galho florido ele pintou antes, e fez o fundo depois!

"A florada vicejante se espraiava por toda a pintura, nos quatro lados e ainda além – uma promessa na tela de que mesmo o galho mais velho, mais humilde, mais alquebrado, estéril e adoentado ainda era capaz de produzir o mais glorioso florescimento no pomar."

a arlesiana

que coisa! pois não é que vincent está apaixonado por madame ginoux? apaixonado sozinho, na imaginação,  à distância e na lembrança, mas volta duas vezes a arles para revê-la. o interessante que apontam os biógrafos é que, na sequência das várias colheitas de azeitonas que faz em saint-rémy, sempre aparece uma figura de referência a madame ginoux, com sua touquinha típica das belles arlésiennes. neste é bem visível:


que história complicada! madame ginoux era a esposa do dono do café de la gare, aquele que vincent pintou (e disse que era a coisa mais feia que tinha feito até então, veja aqui). havia todo o mito da belle arlésienne, mas vincent nunca conseguia modelos e mesmo as prostitutas o rejeitavam. uma de suas grandes apostas na vinda de gauguin para o midi (e ele encarnava no gauguin a ideia do "bel-ami" de maupassant) era conseguir modelos femininos, pois gauguin era másculo, viril, conquistador, aquelas coisas todas.

só que gauguin também era muito oportunista, belicoso, provocador etc. de fato, ele consegue atrair madame ginoux para posar no ateliê da casa amarela, vincent fica assanhadíssimo e quer aproveitar a sessão para ele também desenhar a modelo. só que madame ginoux não gostou e pôs de propósito a mão no rosto, do lado em que estava vincent, para impedi-lo de retratá-la. 

mas isso não desacorçoou vincent, que, correndo-correndo, pintou madame ginoux enquanto gauguin desenhava um esboço a carvão (era uma sessão de uma hora). foram estes dois que resultaram naquela breve sessão:

vincent:


retrabalhado em outra tela como:

gauguin, carvão:

File:Gauguin Ginoux Sketch.jpg

acontece que gauguin antes desenhava e depois transpunha o esboço para a tela. e ele usou seu esboço para  fazer um café de la gare que era um franco arremedo (gozador e ferino) do café de la gare que vincent tinha pintado antes, incluindo em sua tela outros temas de vincent: à esquerda, o zuavo; no meio ao fundo, o carteiro roulin, além de dar traços japonesistas (o japonnesisme era outro dos evangelhos de vincent) às prostitutas da mesa ao fundo.

File:Paul Gauguin 072.jpg

a história é toda muito entremeada, mas o que acontece é que, um ano depois, após a mutilação da orelha, vários ataques e internamentos no hospital de arles, e depois o internamento no hospício de saint-paul, com mais dois severíssimos ciclos de ataques em julho-agosto e dezembro de 1889, vincent se põe a pintar freneticamente a madame ginoux do desenho a carvão de gauguin, resultando nas pinturas que se somam à série l'arlésienne.









essa história de sempre pôr alguns livros (como na cadeira de gauguin, aqui) tem muito aquela questão de fundo de que a leitura, a literatura entendida no sentido humanista e iluminista do esclarecimento, é algo indispensável à plena humanidade do ser. fica clara a inserção dos livros na retrabalhada do primeiro quadro, quando substitui a sombrinha e as luvas da modelo por alguns volumes, um deles até aberto. mas, segundo os biógrafos, a referência é mais nostálgica e existencial do que programática: são seus favoritos da infância, contos de natal de dickens e a cabana do pai tomás de stowe.


o primeiro reconhecimento público

van gogh sofre mais outra forte crise no natal de 1889, em saint-rémy, que se estende por uma semana.

em janeiro de 1890, começa o reconhecimento público de van gogh, surpreendentemente apresentado como o mais simbolista dos simbolistas por albert aurier, o wunderkind da crítica da vanguarda, no mercure de france, em longo e apaixonadíssimo artigo que "cai feito uma bomba no mundo artístico de paris". comentam os biógrafos:
O artigo de Aurier vibrava com a emoção da descoberta. Encontrara um gênio – um artista “empolgante e poderoso”, “profundo e complexo” – um “colorista intenso e fantástico, moedor de ouros e pedras preciosas” – “vigoroso, exaltado, brutal, intenso” – “mestre e conquistador” – “incrivelmente deslumbrante”. Num texto longo, denso, delirante, que fundia prosa e poesia, Aurier tentou capturar em palavras a sensação de ver as imagens que descrevia – a obra deste mestre recém-descoberto. Suas descrições se multiplicavam em voos de centenas de palavras em sequência, cascatas voluptuosas de metáforas, torneios extravagantes da sintaxe e do vocabulário, mandamentos imperiosos e juízos categóricos, brados de reconhecimento e exclamações de assombro e prazer.
aqui a íntegra do extenso artigo de aurier, que se inicia com alguns versos de baudelaire.


12 de jun. de 2012

o grande período de saint-rémy



foi o próprio van gogh que pediu para ser internado no asilo de doenças mentais em saint-rémy. vai para lá em maio, fica bem por algum tempo e depois sofre a grande crise de julho e agosto de 1889, com ataques quase ininterruptos. a partir de setembro, "foi o princípio de uma produção espantosa – quase uma pintura a cada dois dias, durante os oito meses seguintes".

no site the vincent van gogh gallery, dá para acompanhar toda essa produção incrível - como disse ele: "estou trabalhando como um verdadeiro possuído" - que vai de setembro de 1889 até 15 de maio de 1890, quando se transfere para auvers.

11 de jun. de 2012

"um para mostrar, outro para esconder"

só lendo mesmo... mas este quadro era para "consumo interno" (de maneira nenhuma ele poderia mostrar a theo): depois da crise mais prolongada que teve até então - estamos no verão de 1889, os ataques foram ininterruptos entre julho e final de agosto -, van gogh pinta um autorretrato: faces encovadas, olhar meio alucinado, com sombras de um verde lívido no rosto e, sobretudo, volta o "rayon noir" no fundo carregado, roxo bem escuro.


para theo, na mesma época, manda um autorretrato catita, de terno novo, bem penteadinho, parecendo "um bibelô", dizem os biógrafos - todo azul leve, feito "exprès" para deixá-lo tranquilo. considerava agora seu principal dever não incomodar nem preocupar o irmão.


10 de jun. de 2012

um dos ídolos: daumier

estava fazendo um post sobre os levantamentos de cervantes e blake traduzidos no brasil (aqui), pus as figurinhas do quixote e do sancho para ilustrar, e aí lembrei o quanto van gogh adorava daumier. os biógrafos lhe atribuem uma importância enorme para a modelagem caricaturada, quer dizer, em traços esquemáticos, das pinturas de van gogh. este acho que é um bom exemplo:

h. daumier, os fugitivos.

9 de jun. de 2012

o horto das oliveiras



van gogh pintou nada menos que dezoito quadros de oliveiras no ano que passou no asilo mental de saint-rémy. sua irmã wil, poverina, também tinha suas crises existenciais - durante uma delas, vincent dá apoio à irmã dizendo uma coisa que os biógrafos tomam como pista para entender o significado dos olivais para ele - algo assim, mais ou menos: "irmã, acho que é muito corajoso de sua parte não recuar desse getsêmane".

8 de jun. de 2012

os trigais


iiih, vou avisando: trigo é meio negativo, depressivo - van gogh diz mais ou menos assim: nós, que vivemos do pão, não somos em certa medida iguais ao trigo? não podemos nos mover, não podemos seguir na direção a que nos impele nossa imaginação, condenados a amadurecer e então a ser ceifados como o trigo.

pinta a paisagem do trigal com o ceifeiro solitário. volta o fulgor cegante do sol.

os ciprestes


chegamos a junho de 1889, a descoberta dos ciprestes. forma, cor, textura: o cone simples convertido em constelações de pinceladas. a busca da adequação entre tema, linha, textura e estado de espírito. vê nos ciprestes a beleza de linhas e proporções dos obeliscos egípcios. quer fazer com eles algo equivalente à série dos girassóis. trabalha quase em simultâneo em mais de vinte telas com ciprestes.

diagnóstico da época

o diretor do asilo de doenças mentais de saint-rémy confirma o diagnóstico do dr. rey, de arles, ao tomar conhecimento da enorme frequência de distúrbios mentais na família de van gogh.

com avô materno, tia materna, tio materno, tio paterno, outro tio e mais outro tio, além de dois primos - todos com algum tipo de problema mental e/ou crises epilépticas.

vincent vai para saint-rémy

aaaaai, que bom!! vincent está feliz da vida no hospício de saint-rémy - embora a instituição esteja um pouco decadente, a linha adotada é a brandura em vez das correntes, a benevolência em vez das camisas-de-força. em comparação ao povo de arles, os internos eram um modelo de cortesia e simpatia. era a primeira vez que podia desenhar e pintar em público sem ser ridicularizado ou perseguido. e, disse ele, "onde preciso seguir regras, sinto-me em paz". os pacientes podiam passear à vontade e, aparentemente, todos se entendiam bem e se aceitavam mutuamente. "Na opulenta Haia, cuspiam nele; em Nuenen, era banido dos lugares; em Arles, apedrejavam-no." aqui, em saint-rémy, cada um ficava na sua, quem estava passeando por ali parava para olhar os quadros que ele pintava, mas ninguém o incomodava - "têm a discrição e a educação de me deixar em paz". além disso, no fundo ele adorava essas atenções, pois "meu grande desejo sempre foi pintar para aqueles que não conhecem os aspectos artísticos de uma pintura".

a querida tamara barile dá a ambientação, aqui o link:

Maison de santé Saint-Paul en Provence - chapelle

últimas pinturas em arles


trágico, trágico, tudo trágico. theo na maior felicidade, não quer muito saber do drama de vincent - mas sua noiva e já-já esposa, jo bonger, se compadece muito de vincent (o que será crucial mais tarde). vincent está na terceira internação em arles; theo continua em cima do muro; vincent decide pedir transferência para um manicômio, o de saint-rémy. mas é particular e caro. theo refuga, quer algo público e gratuito; novela vai, novela vem, vincent diz que vai se alistar na legião estrangeira, jo insiste para theo aceitá-lo em paris; bom, theo cede e aceita pagar a internação em saint-rémy, mas não três meses, como pretendia vincent, e sim apenas um mês. escreve à direção do hospício pedindo a internação, mas nos alojamentos mais baratos, "de terceira classe". vincent volta à casa amarela para preparar a mudança. o ródano tinha sofrido uma enchente; o aquecimento da casa tinha sido desligado. vertia água e sal das paredes, o ateliê num estado de calamidade. vincent perdeu uma quantidade enorme de desenhos e pinturas. separa tudo, leva semanas até que as pinturas sequem; embala o que conseguiu salvar e manda para theo, meio se justificando que tem muitas coisas que não passam de borrões malfeitos e que ele guarde apenas o que considerar minimamente passável. está tristíssimo pelos transtornos que causa para o irmão, pensa em abandonar tudo e “como pintor nunca chegarei a nada de importante, tenho absoluta certeza disso”.

theo casou, está formando família. no meio de tanto desalento e falta de perspectiva, ainda assim ele pinta seus dois últimos quadros em arles.

um mostra uma família feliz passeando num parque:



o outro, uma estrada solitária, cheia de sulcos, que some atrás do muro de uma casa, ladeada por seu velho tema, vidoeiros decotados:



a solitária


no natal de 1888, quando van gogh mutilou a orelha, foi para o hospital de arles. lá ficava na enfermaria e, nos acessos fortes, era transferido para a solitária, uma cela de isolamento onde o acorrentavam. depois voltou, arrastado pela polícia, e agora a população fez uma petição ao prefeito pedindo sua remoção da cidade e internamento num manicômio. enquanto ele tenta se defender numa audiência oficial, fica no hospital de 25 de fevereiro a 23 de março de 1889, quase todo o tempo "sob chave e cadeado", encerrado na solitária. theo está ocupado em paris, escolhendo as cortinas para o novo apartamento, pois logo vai se casar. por mais mensagens alarmadas que receba da faxineira, do pastor protestante, do amigo carteiro, dos médicos, prefere ignorá-las e acreditar nas palavras de vincent, que diz para ele não se preocupar. mas coitado do theo também, tinha lá seus muitos e muitos problemas, e o namoro, o noivado e os preparativos estavam sendo super-rápidos. a sífilis de theo também tinha piorado e era a última chance de alguma felicidade na vida...

vincent

mais um lindo presente de theotônio simões e dilma machado

que amor

lindo presentinho da querida dilma machado:

Foto

e o link para a galeria de fotos aqui.

aprendi mais uma

"flaubert, que tinha crises parecidas..." hã? não sabia.

nossa...

uma coisa que não sei se "o leitor", tomado genericamente, sabe: o quanto a gente (pelo menos eu) vive e sofre as coisas que traduz. quando fiz "quem escreverá nossa história", de samuel kassow, sobre os arquivos do gueto de varsóvia, passei semanas com insônia, uma semana totalmente passada sem chegar perto da tradução, além de pesadelos. não consegui passar de cinquenta páginas da biografia de virginia woolf, de deprimida que fiquei. recusei a biografia da clarice lispector porque não gosto de coisas mentalmente trágicas. esse van gogh tem sido meu ordálio desde fevereiro. se fosse uma tradução "normal", menos absurdamente, tragicamente sofrida, torturada, injustiçada, complicada, eu já devia estar terminando - tem dias que realmente fica meio difícil trabalhar. como felizmente a companhia das letras e o editor thyago são muito compreensivos, sabem que vou me atrasar cerca de uns quinze, vinte dias na entrega que tinha sido combinada (e já era um prazo generoso). mas caramba, como uma biografia dessas drena a gente!

a mutilação/ la berceuse


van gogh corta a orelha. como tudo é complicado! eu tinha comentado antes que, finalmente, após 600 páginas apresentando elementos, fios, temas em ordem mais ou menos cronológica, mais ou menos avulsos, que iam se entrelaçando apenas esporadicamente, após essas 600 páginas tudo começava a confluir e se entretecer de uma maneira fantástica (nas 300 ou 400 páginas iniciais, eu tinha ficado até um pouco aflita e nervosa, pensando como os biógrafos iam conseguir compor um retrato, uma figura humana mais densa). então nem dá mais para fazer aquelas chamadas que eu fazia antes, destacando um ou outro aspecto. pois são tantos, já apresentados antes, mas agora somados com uma habilidade fabulosa, que não tem como. mas acreditem: essas mãos abaixo são quase a gota d'água simbólica, com um peso existencial muito grande, que faz precipitar a grande crise das vésperas do natal de 1888 em arles, quando van gogh se mutila.

File:La Berceuse Augustine Roulin Otterlo.jpg

é que essa imagem acima não mostra direito: mas a berceuse está com uma corda na mão, que é como ela embala o berço (que não aparece mesmo na tela). nesta abaixo dá para ver melhor a corda. la berceuse vai virar o próprio símbolo da maternidade, e também o ícone da virgem maria protetora dos marinheiros - a corda é uma espécie de salva-vidas também - e um dos dramas da coisa é que a modelo, mme. augustine roulin, parou de vir antes que ele conseguisse terminar as mãos e a corda: como ele sempre foi péssimo para desenhar mãos, ainda mais de cabeça, e sempre teve problemas com a perspectiva, ficou essa incompletude das mãos e a corda meio frouxa, o que adquire para van gogh um peso tremendo de frustração sobretudo no plano simbólico.